Pas de Deux

Sinto um ódio profundo quando meu computador precisa de manutenção e tenho que reinstalar o Windows. O backup desorganiza as pastas, os arquivos e tudo que eu deixo fácil de ser encontrado. 

Pois bem, estava reorganizando as pastas quando me deparei com um pequeno conto que escrevi quando tinha por volta de 14 anos e ainda fazia ballet. 

Está aqui, registrada a lembrança, com todos os seus erros e faltas de pontuação. 

 

“Pas de Deux

 

           Não era exatamente uma apresentação do Ballet Russo sobre o famoso Lago dos Cisnes. Ela não estava de rosa com um tutu rodado e uma coroa. A música não era de Tchaikovsky.

            Mas havia uma platéia. Uma música. Um vestido. Uma bailarina.

            O bailarino estaria em cena em breve e ambos dançariam harmoniosamente o Pas de Deux que tinham ensaiado por meses com seus respectivos coreógrafos.

            Ela já tinha todos seus passos decorados e a coreógrafa jurava que ele também, afinal ele era o melhor bailarino de todos, jamais se esquecia de esticar uma ponta sequer. Suas piruetas tinham a força de um tornado e ele era capaz de girar por longos minutos antes na natureza o fazer parar.

            A entrada era simples. Ela repassava todos os movimentos na mente enquanto vestia a meia calça e ajustava o longo vestido branco. Ela devia começar em demi-plié seguindo o balancé, cruzando o pé na frente em quinta posição, seguindo de demi-plié, dégagé parando em segunda posição abaixando novamente em demi-plié enquanto inclina a cabeça e corpo para direita, pisando em demi-pointe levantando rapidamente o pé direito e terminando com um coup-de-pied para trás onde sustentaria o mais perfeito arabesco que conseguiria até que ele entrasse em cena.

            Ela sentou-se na cadeira e pegou as sapatilhas. Tirou os algodões extras que colocava na parte interna para proteger os pés de ferimentos e bolhas, porque ela queria sentir cada vibração, sendo ela em forma de prazer ou dor. Hoje era o dia e ela não iria se poupar.

            Experimentou a sapatilha e a rigidez de sua ponta de gesso. Estava perfeita. Deu os laços necessários em volta do tornozelo e da panturrilha, tendo certeza que estavam bem firmes.

            Nesse momento ouviu o sinal indicando que a dança começaria em cinco minutos. Apressada, mas cuidadosa, prendeu os longos cabelos em um coque com grampos tão firmes que os sentia puxar o couro cabeludo cada vez que olhava para baixo. Olhou-se no espelho e viu que a maquiagem estava impecável; talvez os lábios estivessem mais rosados do que deveriam, mas não tinha tempo para passar um batom mais forte, tinha que seguir com o aquecimento.

            Um, dois, três, plié, cinco, sei, sete, plié. Espacate. Tendões. Alongamento. Em menos de dois minutos já era capaz de sentir os músculos ardendo e a vontade de começar logo a coreografia já era quase sufocante.

            Saiu do camarim com um sorriso tão radiante que não conseguiria diminuí-lo se tentasse. Passou pelo longo corredor de tijolos vermelhos, mal conseguindo controlar a respiração. Em menos de dois minutos estaria dançando com o melhor bailarino de todos. Apenas ela e ele diante da platéia.

            Preparou-se atrás da coxia. Observou o palco completamente livre a sua frente. Olhou para o outro lado. Não havia ninguém lá ainda. Talvez ele gostasse de esperar as cortinas se levantarem para se posicionar, como um bom profissional.

Por um momento ela se sentiu indigna de dividir o palco com ele.

            O som das roldanas e das cordas sendo puxadas fez ela voltar a si, com o coração batendo desesperadamente. As cortinas se ergueram e ela mal conseguiu ver quantas pessoas estavam lá. Os refletores a cegaram completamente criando a famosa ‘quarta parede’ diante dela.  

            A música começou, como se uma grande orquestra tivesse iniciado a tocar bem diante dela. Era um som alto e onipresente. Ela deixou que música chegasse ao ponto ideal para sua entrada. De relance pensou que um vulto na coxia oposta e sentiu um grande alívio.

            Deu um passo para frente e sabia que daquele momento em diante, todos os olhos estariam voltados para ela. Assim como no ensaio com a coreógrafa, tomou impulso e começou o balancé mais gracioso que conseguia, com movimentos fluidos e perfeitos.

            Seguiu um solo de trinta segundos até que chegasse ao centro do palco e se sustentou com a perna direita, na ponta do pé, deixando a perna esquerda no alto, esticada para trás em um ângulo perfeitamente reto e os braços a sua frente em quarenta e cinco graus.

            O ritmo da música mudou e as notas agudas e suaves se tornaram graves e pesadas. Como no ensaio, deveria se manter na posição por quinze segundos até que ele entrasse e a levantasse do chão, a sustentando pela perna e pelo tronco o mais alto que conseguisse.

            Será que ele não conseguiria levantá-la? Era muito pesada e lhe causaria sérios problemas nas costas? Seja o que fosse, ele contornaria a situação e eles continuariam a coreografia, mascarando qualquer imprevisto.

            Quinze segundos se passaram e a qualquer momento ele a levantaria. Ele era um bailarino muito gracioso, sequer era possível ouvir seus passos. O sorriso dela era o maior de todos os sorrisos.

            Como será que ele era? Era moreno? Louro? Ruivo? Qual era a cor de seus olhos? Como era o seu sorriso? Como se chamava? Quem era ele, afinal?

            Já tinham se passado mais que quinze segundos agora, não? Ele já deveria estar pelo menos perto o suficiente para ela poder senti-lo, mas ela não ouvia sequer uma respiração além da dela.

            Sentindo os dedos serem lentamente esmagados entre gesso da sapatilha e o peso de seu corpo, ela jamais deixou que a dor a impedisse de mostrar seu melhor sorriso para quem a assistia.

            Talvez ele estivesse se atrasado um pouco no camarim. Ele já deveria estar chegando. Ela não poderia dar continuidade da coreografia sem ele; não sem o momento em que se tocavam enquanto ele a levantava no ar. A coreografia não teria sentido sem aquele primeiro toque.

            Imóvel, ela sentiu as primeiras gotas de suor surgirem no pescoço, escorrendo para o decote. Será que ele demoraria muito para tirá-la de sua agonia? Uma cãibra começava a subir pelo pé direito. A cãibra não importava. Já tinha dançado com dores bem piores, mas apenas queria que ele se apressasse, depois que fosse tirada do chão nada mais importaria.

            Ela apenas desejava ardorosamente aquele leve toque. Por que as mãos dele ainda não a tinham envolvido? A música indicava mais de um minuto de apresentação. Tirando a música, não escutava mais barulho nenhum, nem de passos, nem respiração, nem cochichos.

            Naquele momento eles deveriam estar executando movimentos juntos. Ele deveria estar a segurando pela cintura enquanto ela girava na frente dele.

            Por um momento ela pensou ter sentido o toque pelo qual tanto ansiava, deixou que um leve tremor quase a fizesse perder a sustentação da perna, que – ela tinha certeza – não tinha movido um milímetro desde que ela tinha parado, estática.

            Mas o toque fantasma não foi capaz de tirá-la do chão. Sua imaginação jamais faria com que seu corpo flutuasse. Ela precisava dele para isso. Onde ele estava?

            Sua alegria e fervor pela coreografia agora se encontravam perdidas em um mar de lágrimas que lhe bloqueavam a visão. Ela ainda sorria, porque a platéia não merecia testemunhá-las.

            A câimbra tinha lhe alcançado o joelho e apenas cerrando os dentes foi possível impedir que gritasse de dor. Tinha certeza que o pé sangrava.

            A música estava indicando os momentos finais da coreografia. Ele ainda tinha tempo de aparecer e guiá-la para a pose final e encerrar de um modo satisfatório.

            O que o público estaria pensando? Alguns deveriam estar revoltados, outros talvez até encarassem a tragédia como uma inovação.

            Ela só queria que ele aparecesse na coxia por um breve momento. Não precisava mais entrar no palco e dançar com ela. Apenas um relance seria o suficiente.

            Mas ele nunca apareceu.

            Ela ouviu a música terminar e as cortinas começarem se fechar. A luz brilhante dos refletores foi bloqueada por aquela imensa escuridão que a cortina causava. As sombras lhe desceram pelo rosto, pelo pescoço, pelo tronco até que a ponta da sapatilha fosse completamente coberta.

            Ela nunca saiu da pose e ele nunca apareceu.

            Simples assim.”

Vivy Corral

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