Não Me Roube a Solidão Arte, Família e a Busca por um Lugar no Mundo

Outro dia, dirigindo, me peguei pensando numa frase que atribuem a Nietzsche, algo como: “Não me roube a solidão, se não me puderes oferecer verdadeira companhia.” Às vezes, essas frases filosóficas parecem distantes, mas quando você vive a situação, a clareza é quase dolorosa. Você sabe, sem sombra de dúvida, que está ali, naquele lugar descrito.

Confesso que nunca me senti completamente segura sobre o “caminho certo” na vida. A minha jornada tem sido mais um “ir devagarzinho”, escolhendo a trilha que parece mais segura aqui, desviando para a que parece menos estressante ali. Sabe aquela sensação de ir tateando no escuro? Pois é. E o resultado? A sensação de não ter construído nada verdadeiramente sólido.

A única coisa que sinto como minimamente sólida é minha família – meu pai, minha mãe, minha filha. Mas aí lembro de outra ideia que ecoa forte, talvez mais ligada a Marshall Berman (citando Marx) do que a Bauman, mas que conversa com a liquidez dos tempos: “Tudo que é sólido desmancha no ar.” E essa solidez familiar, como vou contar, também tem suas rachaduras ideológicas.

No meio dessa busca meio incerta, uma coisa sempre foi uma certeza quase visceral: eu sou artista. Desde pequena, admirava cantores. Cresci um pouco, fui pro balé. Mais um pouquinho, comecei a desenhar. Do desenho, pulei para contar histórias e, naturalmente, caí no cinema.

Ah, o cinema… Foi aí que levei o primeiro grande susto com a realidade de ser artista no Brasil. A dificuldade de me sustentar me levou para a arquitetura. Fui com aquela crença inocente de que ali encontraria uma veia artística forte. (Alerta de spoiler para os futuros arquitetos sonhadores: preparem-se para desenhar muitos quadradinhos que cabem no orçamento do construtor, não necessariamente algo criativo). Foi só um adendo sincero.

Hoje, ainda trabalho com arquitetura, mas num esquema freelance, instável, que alimenta minhas crises de ansiedade como ninguém. E foi justamente para não pirar de vez que, junto com a terapia, resolvi voltar às minhas raízes: fiz aulas de teatro. Sim, voltei para as artes, meu eterno porto seguro mental e emocional.

E que reencontro! O teatro tem sido um universo completamente diferente, divertido, aberto, cheio de pensamentos que se encaixam nos meus. É libertador. Desde que comecei, em 2024, tem sido um campo de descobertas que nem 15 anos de terapia me proporcionaram.

Este ano, meu grupo vai montar uma adaptação de “O Auto da Compadecida”. Estamos há uns dois meses imersos nesse processo delicioso de discutir a peça, a montagem. E semana passada, fui a “sorteada” (ou escolhida, quem sabe?) para fazer o Encourado – o Diabo, o contraponto de Jesus na história.

Na nossa leitura, Jesus e o Encourado têm uma dinâmica quase de implicância mútua, sabe? Ficam se zoando, tirando sarro um do outro. Jesus aqui não é nenhum santinho intocável. Confesso que ficaria feliz com qualquer um dos dois papéis, mas receber o Encourado me deixou extremamente feliz. Sinto que há muito o que explorar ali.

Só que aí… caí na besteira de contar para a minha mãe.

Minha mãe é extremamente submissa ao meu pai. E meu pai? É aquele evangélico fervoroso, conservador ao extremo – o tipo que vê um chifrinho num filme e já sente o cheiro de enxofre, sabe? Bolsonarista, defensor da “família tradicional brasileira”. Imagina a alegria dele com uma filha divorciada, mãe solo, morando em casa… Nem preciso dizer que não sou exatamente o protótipo de filha que ele sonhou. Acrescente a isso minhas inclinações progressistas, meu trabalho “informal” (que me permite fazer o que gosto, mesmo ganhando menos), e pronto: na visão deles, sou a personificação do egoísmo e do desvio.

A reação ao saber que eu interpretaria o “diabo” no teatro? Imediata: “Não fale nada!”.

Ali, naquele momento, a ficha da frase de Nietzsche caiu com força total. Eu esperava, talvez ingenuamente, um pingo de aceitação, de compartilhamento da minha alegria com algo que está me fazendo tão bem. Mas não. Dentro do meu próprio lar, minhas pequenas (grandes, para mim!) conquistas precisam ser segredos. Preciso realizar meus sonhos em silêncio.

É uma solidão ideológica que me atravessa. Uma solidão existencial. O espaço onde eu deveria me sentir mais segura é justamente onde não posso celebrar quem estou me tornando, o que me move.

E o pior é o paradoxo: estou presa nesse espaço físico, tolhida em minha liberdade de expressão mais básica, porque o sistema em que vivemos não remunera a arte como deveria, me impedindo de conquistar a independência financeira para sair. Tenho meu refúgio mental e emocional no teatro, nesse universo paralelo de liberdade e criação, enquanto meu refúgio físico se torna cada vez mais uma gaiola ideológica.

 

É complexo. É a vida tateando no escuro, buscando companhia verdadeira, mesmo que, por enquanto, ela se manifeste mais intensamente sob as luzes de um palco, interpretando um Encourado cheio de vida. E talvez seja nesse palco que eu encontre não só a companhia, mas a mim mesma.

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