“A escrita parece, à primeira vista, uma invenção maravilhosa — capaz de desenvolver o conhecimento e reforçar a memória dos homens. Mas eu sou capaz de prever o que realmente acontecerá.”
Foi Sócrates quem disse isso. Lá atrás. Antes de tudo. Antes do livro impresso, da Wikipédia, do Kindle. Ele já pressentia que a palavra escrita nos afastaria da emoção viva da fala. Que, ao confiar nas palavras dos outros, deixaríamos de cavar as nossas próprias.
Hoje, olho para a inteligência artificial com os mesmos olhos com que Sócrates olhou para a escrita. Parece, à primeira vista, uma invenção maravilhosa. Mas será que é?
A tecnologia nunca chega sozinha. Ela vem com promessas. A Revolução Industrial prometeu nos libertar da fadiga física. O que ganhamos foi jornada de doze horas, corpos esmagados, cidades que engolem almas. O Uber prometeu autonomia. Criou uma legião de pessoas exaustas, avaliadas por estrelas, controladas por algoritmos. E agora a IA promete tempo livre, produtividade, eficiência. Mas pra quem?
A verdade é que a promessa da tecnologia raramente se cumpre igualmente pra todos.
A pergunta que me faço — e que te faço — é: será que agora a gente tem, pela primeira vez, uma chance real de usar a tecnologia para viver melhor? Será que, com a IA avançando, finalmente poderemos reduzir jornadas, dividir melhor a renda, devolver tempo pra vida?
Ou será que o topo — quem já tem tudo — vai fazer de tudo pra continuar lá? Será que esse “poder” vale tanto assim?
Porque a verdade é que o poder — esse que a gente corre tanto pra ter — cobra um preço. E talvez esse preço seja alto demais. A gente trabalha horas e horas, acumula dívidas, se compara, se exaure, tudo pra quê? Pra manter um estilo de vida que nem era o nosso sonho original.
Eu fiz esse exercício. Me perguntei: o que eu realmente preciso?
E a resposta foi simples.
Não preciso de uma Lamborghini.
Não preciso de um apartamento de cinquenta milhões.
Fico feliz com cinquenta metros quadrados, um carrinho elétrico básico, e três salários mínimos que me permitam comer fora de vez em quando.
O que eu quero é tempo.
Tempo pra escrever.
Pra ir ao cinema à tarde.
Pra sentar num café e olhar a rua sem pressa.
Tempo pra ficar triste.
Tempo pra ter ideias.
Tempo pra ser quem eu sou.
E isso, nenhuma IA vai me dar. Mas talvez ela possa ajudar, se a gente for inteligente.
Se a gente for justo.
Se a gente lembrar que o valor do trabalho criativo não está na perfeição, mas na presença. Que a arte não é sobre repetir. É sobre arriscar. Que o texto mais bonito pode não ser o mais bem escrito — mas o mais verdadeiro.
A IA pode gerar mil versões de um romance. Mas ela nunca vai saber o gosto da lágrima que você segura quando escreve sobre amor. Nunca vai sentir o medo de um não. Nunca vai esperar ansiosamente por um talvez. Nunca vai ouvir o silêncio depois do fim de uma frase.
A máquina pode aprender a falar. Mas não a calar. E é no silêncio que mora a criação de verdade.
Não quero um futuro onde todo mundo tenha que virar gestor de si mesmo. Onde criadores precisam performar produtividade o tempo todo. Onde o artista vira marca, e a arte vira post. Quero um futuro onde escrever continue sendo humano. Onde viver continue sendo permitido.
Protágoras dizia: o homem é a medida de todas as coisas.
Talvez a IA venha pra nos lembrar disso.
Ou pra nos fazer esquecer.
A escolha é nossa.